José Andrade

A cidade adormecida descansa de mais um dia, o meu ultimo dia! A minha ultima noite na cidade! Em outras mãos entrego as chaves das portas que eu abri.  Nas mãos de Deus entrego meu corpo abatido, todo ele desilusão. Estandarte triste de uma estranha guerra, na qual eu fui ferido com um daqueles golpes em que uma pessoa leva muito tempo para se recuperar. Se é que se recupera! Passarão alguns minutos e tudo estará consumado. “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste, se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco?” (Carlos Drummond de Andrade)
 Abro a porta e saio como quem sai da vida para entrar na morte. Escuto o soluçar do vento que vem banhar meu rosto com as águas turvas da mentira.  Ó noite onde tudo mente e engana! Ó noite única coisa no universo do tamanho da minha dor! Olho a casa, a Avenida Dalva e a Igreja de São Jorge como quem olha as coisas que se perdem para sempre. Ó santo guerreiro, não permitas que eu me perca em ser treva e me torne noite sem sonho e sem estrelas.
Caminhei os últimos passos; entre o portão da casa e a porta do carro. Tudo ali era uma despedida que se cumpria. Um adeus sussurrado na alcova da madrugada. Minha alma sem futuro e nem casa, passa errante pela noite má levando na bagagem silenciosas lembranças e magoas sombria. Quem me consolará? Pergunta meu coração, porém meus olhos não perguntam nada. Debruço-me sobre o rosto branco das ruas sombrias e desertas e começo afogar-me nas águas noturnas do meu desassossego.


José Andrade

Às vezes sou acometido de uma estranha vontade de escrever a cada um dos meus amigos. É como se o meu peito explodisse e dele jorrasse todos os sentimentos do mundo. Infelizmente não escrevo nada a ninguém. Escrever é perigoso. Quem já tentou, sabe. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que escrevo escondem outras – quais? Talvez um dia eu escreva. Escrever é pular de paraquedas no escuro. Hoje refleti sobre a liberdade. Li um pequeno texto de Clarice Lispector a propósito do que eu estava refletindo. Refleti mas tive medo de escrever! Então, peço a bênção a Clarice para partilhar com você um trechinho do que ela escreveu sobre essa liberdade inocente que vive e morre no coração da gente.

“- Ela é tão livre que um dia será presa.
- Presa por quê?
- Por excesso de liberdade.
- Mas essa liberdade é inocente?
- É. Até mesmo ingênua.
- Então por que a prisão?
- Porque a liberdade ofende.” (Do livro Um sopro de vida)



Cecilia Meireles 
 
De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...


 

JOSÉ ANDRADE

A cidade agora é um vão de luz deixado para trás. Eu vou avançando pela estrada, me embrenhando na noite. Mas esta, não é uma noite qualquer, pois ela nos remete a outra que jamais foi esquecida. A noite escura do Monte das Oliveiras, nela se embrenha Jesus, faz parte dela a solidão e o abandono vivido por Ele, que, vai ao encontro da escuridão e da morte.

Olho para traz, não avisto sequer um único vestígio da cidade, agora submersa no negrume da quinta-feira da paixão, eu embrenhado nela, sendo arremessado à noite dos tormentos. Faz parte desta noite a traição de Judas e a prisão de Jesus, bem como a negação de Pedro; e ainda a acusação diante do Sinédrio e a entrega aos pagãos, a Pilatos.

Jesus embrenhado na noite... Ele parece recuar assustado diante de uma realidade tão monstruosa! Sinto-me deveras também assustado, embrenhado na escuridão de tal sorte que dentro de mim também é noite.   Sinto que é noite. Não porque escureceu e a cidade ficou para traz, mas porque dentro de mim, no fundo de mim, residem os mesmo sentimentos de Cristo.
 Jesus estende o olhar pelas noites do mundo: vê a maré das nossas circunstâncias feitas de mentira, da não compreensão, da falta de dialogo, do obscurecimento da verdade. Nós também somos noite! Não nos vemos um ao outro. Diria Drummond: Que adianta uma lâmpada, uma voz? É noite no meu amigo!  É noite no Monte das Oliveiras, no meu coração...
 Jesus entra na noite para ilumina-la, transforma-la em dia! Diria ainda Drummond: É noite, não é morte, é noite! Não é dor e nem paz, é noite.