José Andrade

Ficha Técnica: ESCRITORES DA LIBERDADE (Freedom Writers, EUA, 2006) Direção e Roteiro: Richard LaGravenese, baseado no livro best-seller “Diário dos Escritores da Liberdade”.
Elenco: Hilary Swank, Patrick Dempsey, Imelda Stauton, Scott Glenn, April Lee Hernandez, Escritores da Liberdade.
Produção Executiva: Hilary Swank.
Drama, 122 minutos, Paramount Filmes, Cor.

Compreender, eu diria, é saber que o sentido poderia ser outro. (ORLANDI, 1993, P. 116 in Discurso e Leitura)
Richard laGravenese, já conceituado roteirista, atuante em “Volta Por Cima” e as "Pontes de Madison", dá muita relevância à escolha cuidadosa das músicas que compõem a trilha sonora de seus filmes. Neste, especialmente, escolheu o compositor WiII (will.i.am) de "Black Eyed Peas", Mark Isham. Will compõe a batida do hip hop, que ouvimos, logo no início do filme, e que ilustra a relação desse novo gênero musical, inspirado nas gangues dos anos 90, nos EUA, reproduzindo efeitos da intensidade dos conflitos e da violência entre os jovens desses grupos.
Mark Isham entra com o som de orquestra, permeando a batida forte do hip hop, querendo ilustrar, não só as diferenças entre os jovens estudantes e a professora, como também a imposição desse convívio e a necessidade de interação dessas presenças, tão heterogêneas, entre pólos tão distantes.
Os solos de violino de Miri-Ben-Ari, musicista conceituada, suaves e marcantes, sombream algumas cenas, como pano de fundo, necessário à expressão da vida interior de alguns personagens e de conflitos existenciais que surgem e coexistem nas vidas dos estudantes, acentuadamente, a, também, na vida da professora, à medida que vai crescendo profissionalmente. A trilha sonora, especialmente importante pare este diretor e roteirista, reforça os tumultos em sala de aula, freqüentes, devido à segregação dos diversos grupos étnicos entre si. Confirma os efeitos emocionais do reflexo da violência das ruas, que passam a disputar territórios, com uso de extrema violência entre os jovens. Gangues de negros, latinos, asiáticos, brancos, se formam e vivem um apartheid americano de várias cores, raças, culturas, linguagens e procedências. Nesse caldeirão migratório de Los Angeles, em Long Beach, a Secretaria da Educação implanta nas escolas o projeto de integração, juntando, numa mesma sala de aula, jovens, pertencentes a grupos diferenciados, às gangues, que se fortalecem, através do uso da agressão e da hostilidade entre 54, proclamando orgulho, vaidade e honra, desta forma julgando defenderem suas origens e sobrevivência. “Escritores da Liberdade” acontece, nesse contexto, onde tudo, entretanto, ou quase tudo, se desenrola na escola.
O diretor se apoiou na história de Maria Reyes, da personagem Eva, expandindo-se e tocando nos outros tantos dramas, semelhantes, dos outros relatos dos diários.
Entretanto, o foco da narrativa está no desempenho de Erin Gruwell, a professora que, para conseguir se impor àqueles grupos, sendo-lhes estranha também porque branca, culta e professora, pelas diferenças gritantes, portanto, rejeitada pelos estudantes, cria estratégias pedagógicas e afetivas de aproximação, não só para conscientizá-los da semelhança de suas histórias e de suas perdas e buscas, como da necessidade da aprendizagem escolar para se sentirem não inferiores, focando na auto-estima de cada um e no interesse coletivo.
Criando meios para que se olhem como iguais, através do reforço de suas histórias, a professora Erin oferece-lhes leitura de temas próximos às suas experiências e consegue que se "vejam" e que se considerem um novo grupo. Aproxima-se, quando mostra sua fragilidade, pois é judia e, na época nazista, excluída e perseguida nas suas origens.
Os exercícios de língua e redação - inglês básico - se deslocam para leitura de livros e escritura de suas próprias experiências, agora compartilhadas. Além de livros, compatíveis com suas vivências pessoais e coletivas, que lhes trazem conhecimento, desenvolvem a escrita, e, principalmente, os afastam das antigas gangues, das ruas, pois os unem como um novo grupo, em torno de uma nova busca por direitos e espaço ria escola e na vida.
A professora quebra barreiras institucionais, levando o produto de seu trabalho com os alunos para autoridades educacionais avaliarem, já que encontra resistência, indiferença e é segregada pelos colegas e diretores, que a rotulam e a quando uma das gangues invade a escola e os alunos se agridem fisicamente no pátio.
A personagem da professora Erin Gruwell, interpretada por Hilary Swank, atriz ganhadora de dois Oscars (Meninos não Choram e Meninas de Ouro), intérprete principal em "Menina de Ouro” valoriza a aparência física frágil da personagem e o jeito dócil que, apesar da pouca experiência como professora, cresce, fazendo brotar, na interrelação de sala de aula, força de persuasão e compreensão da realidade opressora vivida por aqueles jovens. Assim fez, também, com a menina, aparentemente, frágil de seu personagem, que se transforma na boxeadora tenaz e vencedora, em "Menina de Ouro".
Em "Escritores da Liberdade" essa força não é física, mas de caráter, resistindo a tudo e a todos, no sentido de ajudar seus alunos e perseverando .em seu propósito.
Patrick Dempsey, ganhador do Globo de Ouro, em "Grey's Anatomy", contracena com Hilary Swank, encarnando o marido que se abriga na "aparente" fragilidade da mulher para não se lançar em grandes projetos. Quando, porém, percebe o amor, a dedicação e, principalmente, os resultados visíveis da atuação da esposa, não consegue ser cúmplice desse sucesso, entrando em conflito com seu papel na relação a dois. Não se identifica com o projeto de vida de Erin, preferindo sair da relação.
Com características peculiares especificas de época, como alguns outros filmes como "Ao Mestre Com Carinho", "Sociedade dos Poetas Mortos" e "Conrack", enfoca a problemática da escola, face à relação professor versus aluno, na mediação ensino/aprendizagem, como espelho da realidade sócio-histórico-cultural, onde a escola está inserida, e o rigor e/ou conservadorismo de escolas e professores mais antigos) que não querem abrir mão de suas posturas cristalizadas e de seus status que, já garantidos pelos anos de experiência adquiridos.
O drama dos conflitos étnico-raciais, chegam ao seu clímax de tensão e violência urbana na Califórnia, EUA, nos anos 90, penetrando no espaço da escola, onde as contradições da sociedade pluricultural e o diacronismo das instituições educacionais se acirram e se refletem nas relações interpessoais entre alunos versus alunos; professor versus alunos; alunos versus instituição; professor versus instituição Choque cultural, injustiça e contradições sociais, numa sociedade muito diferenciada, geram segregação de todos os lados, inclusive dentro das minorias, seus alunos como incapazes, inferiores, desacreditando de seu trabalho e deles, como pessoas e estudantes.
O grupo cria vínculos em torno de interesses comuns; consegue se organizar e viajam. Trazem pessoas importantes, à escola, para palestras, com relatos de experiência de vida, correlatas a seus trabalhos escolares: a mulher, senhora, agora, de 90 anos, que abrigou Anne Frank no nazismo. Agora se "pertencem" e se reconhecem uns aos outros. Querem ficar juntos. Fazem seus diários. Compilam suas histórias: são uma família. Respeitados, conseguem permanecer nos anos seguintes, do ensino médio, na mesma turma e com a mesma professora. O livro com seus relatos, diários de suas vidas realizados através de exercícios de redação, é publicado com o título “Escritores da Liberdade”, em 1999.
O diretor, embora tenha incluído na narrativa do filme a separação da professora Erin de seu marido e a resistência de seu pai, interpretado por Scott Glenn, à aceitação de seu empenho a uma profissão tão pouco remunerada e de pouco prestígio social, não se detém em detalhes, apenas colocando-os como reforço a mais uma forma de segregação de gênero-mulher e profissional¬ professora.
Vale a pena considerar a movimentação da câmera, pois ela organiza o quadro cênico, enfatiza personagens ou objetos, guia o nosso olhar. O ponto de vista e o enquadramento por ela realizado são significantes que geram significados, guiados pelo cameraman, sob a batuta do diretor para atingir o efeito desejado. A paisagem (da câmera) que cria não é livre de significados. É uma janela que permite ver ou não ver como e o que conta determinada história. Assim, no mundo fílmico, tudo "conta". Tudo significa. À medida que o drama vai se solucionando, sob o ponto de vista do diretor e da professora, ou seja, que os conflitos intergrupais vão se amenizando, a sala de aula, cenário ambiente, vai se organizando: as carteiras se perfilam; há vasos de flores nas janelas e os objetos vão se rearrumando, numa nova ordem. Os jovens alunos também mudam suas aparências: cabelos arrumados e com cores uniformes. As tomadas são enquadradas, pela câmera, em plano médio, simultaneamente ao "enquadramento" à organização pretendida de suas vidas.
O foco narrativo é subjetivo, pois é o diário da personagem Eva que ela mesma narra e que conduz a história. Entretanto, a escolha desse personagem narrador é do diretor. É seletiva.
A professora está ou não está "vestida de professora", com seu "ingênuo" colar de pérolas, porque as linguagens importam e importam muito na relação emissor/receptor. Ela se veste como professora - cria sua identidade, o que a distingue pertencer a um determinado grupo. O figurino, portanto, é expressivo, pois envia mensagens e reforça as identidades dos personagens: os jovens dos anos 90 e pertencentes a ghetos ou gangues, de classe social baixa, como no filme, vestem-¬se, cortam e pintam seus cabelos, caracterizadamente, num estilo próprio.
Há um código que se expressa "silenciosamente" (?), através dessas marcas: os rapazes usam bonés ou toucas de meia na cabeça; os bonés são virados. Observe-se a turma dos alunos especiais, do 3° ano, maioria branca: cores suaves; predominância dos tons pastéis. Cabelos arrumados.
O filme se passa na sala de aula, quase totalmente: percebe-se que a intenção seja delimitar a amplitude da problemática pluriracial e pluricultural, delimitando-se o espaço do questionamento à sala de aula. Embora polemize a segregação, em vários aspectos, nem o diretor e, provavelmente, nem o livro, aprofundam discussões em torno das causas dessa segregação, numa sociedade de consumo, capitalista, a sonhada Terra Prometida, cujo modus operandi destrata, separa-se desses grupos diferenciados, que migram para os EUA, em busca de melhores condições de vida e vivem apartados da riqueza e da pujança americanas.
As técnicas, recursos e instrumentos, utilizados pelo cinema, como sétima arte, moldam o filme e formatam mensagens que passam pelo crivo do diretor ou do sistema que produziu a obra, criando meios para fixá-las no receptor de tal ou qual forma.
Em nenhum momento, implícita ou explicitamente, foi feita alusão à hegemonia político-ideológica; ético-moral ou econômico-financeira da sociedade americana, seu “american way of life" impost, ao mundo ocidental ou ocidentalizado.
Questionou-se de maneira ético-moral a segregação, a violência, a existência de grupos que se hostilizam, externa elou internamente, mas sob o olhar da professora Erin, o discurso em que os professores ganham mal, são desvalorizados, se ratifica, no filme, então, na justificativa de que, por isso, são indiferentes, desinteressados. Que por isto, não se "esforçam" para mudar as coisas, sem menção/consideração ao que conduz a essa condição.
Para "solucionar" os impasses e contradições institucionais dentro da escola, a professora consegue outros trabalhos, abre mão de sua vida familiar e do próprio marido. Quebra hierarquias. Consegue "furar" o cerco dos órgãos institucionais para que, alguns daqueles, alunos cheguem à universidade, tendo oportunidades de adquirirem um melhor ensino. O esforço individual, a perseverança, a persistência ¬motes do "progresso" americano, mais uma vez, oculta, para fora do debate, a questão do domínio e da invasão imperialista que se propaga e consolida valores ideológicos como vaidades absolutas. Não questiona a presença de imigrantes de todos os lugares do mundo, nos EUA: suas diferenças que precisam ser mantidas, pois diferenças culturais não podem ser apagadas. Desvia o foco das gangues - o por que de sua formação, o por que de sua violência, para uma questão já amplamente discutida, a dos judeus, embora também, segregacionista.
Que os grupos precisam se fortalecer e se tornarem coesos em torno de um objetivo maior, é claro que sim. Mas somente o imperialismo nazista causou segregação e morte; genocídios? E o Vietnam? Hiroshima e Nagasak? E a invasão do Iraque? Como vivem os grupos latinos, diferenciados, fugidos da miséria dos países subdesenvolvidos ou "emergentes", hoje, nos EUA e na Europa? Este ponto gera polêmica porque suscita discussões e interpretações ambíguas. E explicações comprometidas e privilegiadas.
O que se vê na realidade escancarada do mundo contemporâneo e no entrelaçamento de interesses de governos e nações, não são sucessos individuais, com varinhas mágicas, apaziguando grupos de conflito. Vide Israel e o mundo palestino; judeus e muçulmanos. Considere-se á alçada ao poder do presidente Obama, 1º presidente negro dos EUA. Em que circunstâncias isso foi possível? Qual o desgaste provocado pela derrocada do marketing político de Bush e sua gestão, embora com altos ganhos econômicos e financeiros para os EUA?
Embora de coerência estrutural interna satisfatória, "Escritores da Liberdade" não satisfaz nem se tratando de buscar novas soluções para os impasses e contradições que vivem hoje as escolas, impedidas de cumprir seu mínimo papel - o do ensino, já que espelham os conflitos, os jogos de interesses de um mundo caótico, voltado para o individualismo, o lucro financeiro e o lema de se dar melhor em tudo, individualmente.
Também não satisfaz porque não discute as migrações, a utilização extorsiva da mão-de-obra de grupos minoritários, mal pagas em qualquer lugar do mundo, porque não qualificada (ausência da escola e de um ensino técnico de qualidade), principalmente em seus países de origem. A miséria, a violência, o desemprego, a destruição da natureza; o direito e a possibilidade de ser diferente e ter acesso aos bens, no mínimo básicos, produzidos pelo Homem.